segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Sobre Pontes e Carros

Sentada no banco de trás do carro de seus pais os dedos pequenos e impacientes grudavam no vidro frio, estavam rodando há bastante tempo, a pequena perdida em seus pensamentos e os pais perdidos nas ruas pintadas de crepúsculo daquela cidade imensa. Ela nunca soubera exatamente a magnitude daquele conjunto de cimento que pulsava dia e noite nos jornais, nas rádios e no cotidiano de cada pessoa que por lá passava, sabia, sim, que era uma grande cidade, conhecida e admirada por muitos, temida por alguns e objeto dos sonhos de indefinidas pessoas. Todos os rostos que rapidamente passavam pelo seu vidro pareciam-lhe anônimos, vazios e desconfortavelmente apressados, não conseguia entender como alguém conseguia viver naquela adrenalina eufórica, provavelmente sofriam do coração, pelo menos era o que acreditava baseando-se nas sábias palavras de seu avô que pregavam que uma vida agitada e viciante acabava por maltratar este órgão tão vital. O avô já havia morrido há alguns anos, deixara nela uma ferida estranha mista de saudade e tristeza, entretanto sua pequena cabeça só entenderia mais tarde a real dor que esta lhe provocara.


Sobre lágrimas sabia um pouco, entendia que mamãe chorava quando brigava com o pai, figura sempre autoritária perante os outros, mas perto de si tão sorridente e gentil. Ela pensava que, talvez, se sua mãe visse seu pai mais vezes como ela via, não chorasse tanto. Gostava do rosto dele quando a colocava para dormir, nessas horas ele a lembrava o avô, sem máscaras, o semblante suave dava-lhe um pouco de sono que se consolidava quando ele lia, ou simplesmente falava, algumas histórias de lugares distantes e frios, ambos gostavam muito de lugares frios. Porém ela percebia que perto da mãe ele se armava com muitas camadas das quais não conseguia tirar um significado, estava sempre tenso, meio bravo e a voz não era aquela que a fazia viajar pela neve distante, nesses momentos queria que chegasse logo a hora de dormir para poder ter novamente o pai que tanto amava. Quando começavam a gritar no quarto ao lado do seu escondia-se em baixo das cobertas e evocava o rosto do avô dizendo-lhe que eles estavam apenas cantando para um passarinho mal criado voltar para seu ninho, assim conseguia finalmente embarcar no sono profundo.


Aquela tarde fora estranha, era um sábado no qual o pai resolvera que todos deveriam ir passear para olhar vitrines, ela gostava muito de olhar as lojas com roupas bonitas em grandes bonecas pálidas, porém a mãe ficava impaciente pois provavelmente perderia algum programa interessante que passaria na televisão. Como em quase todas as ocasiões, e esta não era uma exceção, o pai dava a palavra final saíram todos no carro da família em direção ao centro comercial mais próximo. Ficaram horas olhando os brilhos e as luzes das lojas, entraram em apenas uma na qual a mãe comprou-lhe uma tiara vermelha para usar na festa de Ano Novo que se aproximava, ficara tão bem com seus cabelos escuros que pediu para não tirar e assim foi andando com seu adorno novo e um sorriso no rosto. Pararam para tomar sorvete e ainda ficariam muito tempo se não fosse a visível irritação da mãe com o programa, foi então que o pai decidiu que era hora de voltar para casa, entraram todos novamente no carro e se perderam no caminho de volta.


Os dedos já haviam adormecido com o frio do vidro, ela estava cansada, queria sua cama, mas seu pai não conseguia achar o caminho de volta e sua mãe não parava de falar e soluçar. Eles estavam brigando e passando por várias pontes enquanto tentavam não gritar para não assustar a criança no banco de trás. Mas ela sabia o que estava acontecendo e ela sabia que chamar seu avô em seus pensamentos não os faria parar. Eram tão bonitos os prédios iluminados e as pontes cheias de luzes rápidas daquela cidade e era tão triste o ar que se impunha dentro daquela gaiola de metal ambulante, ela não entendia como podiam coexistir coisas tão antagônicas em um mesmo espaço naquele exato momento. Sua pequena cabeça tão singelamente enfeitada tentava descobrir o momento em que aquele homem, seu pai, deixara de ser a pessoa que a colocava para dormir e que lhe dera sorvete há algumas horas. Passavam por uma ponte muito iluminada e grandiosa quando um tremor tomou conta do carro, ela, pequena, teve medo de cair, a mãe se calou e o pai jogou seus olhos sobre aquela mulher por um instante, um olhar triste e vazio que fez, finalmente, a pequena no banco de trás entender que entre seu amado pai e sua mãe todas as pontes haviam tremido tanto que acabaram por partir.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Última noite

Era difícil escolher que roupa usar para aquela ocasião, meia garrafa de uísque já havia sumido garganta abaixo e pelo menos um maço de cigarros já virara cinzas entre seus dedos. Era tão belo deitado, dormindo tranquilamente, que roupa ele deveria usar? Com certeza algo que combinasse com seus olhos claros e seus cabelos rebeldes, não muito formal. Jeans era uma boa opção. Mas não seria casual demais? Geralmente nestes eventos não se vê a parte de baixo do convidado de honra, onde deixara a calça? Lembrava vagamente que jogara suas roupas no chão, mas a lembrança estava tão imersa no êxtase que era difícil recordar exatamente onde as peças haviam caído. Tinha que parar de ter essas aventuras de uma noite, é claro que a satisfação era garantida, o prazer era intenso, mas no final só havia o vazio, ninguém para ligar, ninguém para abraçá-la durante o dia. Entretanto aquela noite fora diferente, algo vivo ainda respirava, os olhos claros não estavam completamente apagados, mas era loucura pensar assim. Ela sabia que não era possível. Como a cultura era mórbida pensou de repente, velar um corpo sem vida durante horas, chorar sobre a pele sem elasticidade, acariciar as mãos rígidas. Enterrar todas as lembranças, as flores. Esquecer as dívidas. Devia terminar logo, o tempo corria em sua cabeça dolorida, uísque de mais, cigarros de mais. Em menos de duas horas o caixão chegaria e o corpo devia estar pronto, vestido, maquiado, sem as marcas de batom pelo corpo, marcas vermelhas, ela adorava usar vermelho nos lábios. Ah, mas ele era tão sereno! Nem parecia... Será? Estava frio, isto podia dizer certamente, estivera frio durante o ato inteiro. Uma noite fria. Parou de pensar e começou a trabalhar, ajeitou os cabelos, deu cor as faces, vestiu o corpo inerte e restava apenas fechar-lhe os olhos, entretanto não tinha coragem de apagar a luz verde clara que a encarava, seria muita ousadia deixar o corpo com os olhos abertos? Eram tão lindos, não havia por que fechá-los para sempre. Ficou admirando o trabalho bem feito, despedindo-se daquele que mais a tocara, logo o levariam para longe de si, logo nunca mais o veria. Mas era assim com todos que passavam pelas suas mãos não entendia por que ele era diferente, aquele sentimento de culpa, era apenas mais um cadáver! O caixão chegou. O corpo se foi. E na sala ficou apenas ela, deitada, cansada, com os olhos de vidro encarando o teto.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

...

A chuva parou na caneca vazia. Vazia como estas mãos que escorregam pelos olhos úmidos, que imagem interessante aquela. Como pudera? Pequeninos cacos que vidro espalhados por todo chão, azulejos rubros de hemácias, onde estivera? Onde estivera sua consciência quando escorregaram os dedos firmes na pele branca? Os dedos? Não os dedos, os cacos. De seus olhos? Que importa! Agora tudo é névoa. Sem chuva, sem lágrimas... E o brilho? Que brilho? Besteiras folclóricas, não há brilho depois da escuridão, depois do vermelho latente. Há apenas o vácuo. E os sons? Estão chegando os sons do horizonte, posso vê-los voando pelo céu. Não se pode ver os sons querida... Claro que sim, eles estão lá, oscilando num turbilhão, tão bonito olhar daqui. O baixo tem a forma de um beijo. O beijo que nunca mais sentirá. Nunca? Não. Estranho, percebo agora que o grito de angústia é vermelho e voa tão mais rápido que o baixo...

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Trecho a ninguém

O chá esfriara nos últimos dedos da caneca velha e manchada e as folhas continuavam em branco, a caneta jogada e destampada esfriara nos locais de pressão da mão humana e alva que por sua vez descansava no mogno sem brilho do tampo da mesa. "Os anos passam rápido sobre a planície ofuscante do espelho, cada dia reflete um homem que foge de si mesmo e esconde um mundo de escuridão suspenso no vácuo de uma carcaça epidérmica", não sabia exatamente quando havia lido, mas as palavras martelavam em sua cabeça e bloqueavam qualquer tentativa de criar. Estava velho, preso em suas escolhas solitárias feito uma pedra plantada no chão de cimento. Cada gota da chuva ácida de culpa acumulada durante anos corroía-lhe a pele, sua face deformou-se, virou um espectro, uma idéia horrenda dos sentimentos mais pesados e seu corpo não se movia, a mão grudara no mogno e assim permaneceu. Dia após dia, noite após noite e as sombras iam e vinham naquela imagem vazia de Ninguém deformado. Suas folhas em branco ecoavam em perfeita sintonia com aquelas palavras que não paravam de martelar...
Eu amo, sinto saudades, mas há algo quebrado que espeta minha carne. Olho para trás e não sei como cheguei até aqui, deste jeito, as portas se abrem, o vento sopra e eu estou ainda imóvel. Quero gritar, mas minhas boca está costurada, eu amo e as vezes não tenho coragem de esticar-me e envolver este amor com toda minha personalidade. Amo e choro quando estou distante, porém tenho medo de ser incompreendida, de ser motivo de temor. Será possível que talvez eu o assuste com todo sentimento adormecido que talvez volte a desenvolver? Os poemas no meio da noite, os sonetos com seu nome, as cartas... Será que ele seria capaz de esquecer minhas cartas? Tenho medo de escrevê-las. Tenho medo de explodir em emoções. Tenho medo de voltar a ser o que era.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Não me deixe...

Não me deixe, não aqui no vazio, nestas paredes brancas que ferem meus olhos. Não! Não me deixe sozinha com meus pensamentos atormentados, sozinha comigo, por favor, não me deixe! Não solte minha mão, pois meus dedos apodrecerão no ar da solidão. Não largue meu corpo na cama fria, pois minha pele quebrará como a camada frágil de gelo sobre a água. Não, por favor não me deixe! A rosa de minhas faces morrerá pálida sem seu toque, meus lábios secarão sem os seus, não me deixe no mar da desilusão, não me afogue em minhas lágrimas secas. Que será deste rosto morto em frente aos espelho? Como encarar os olhos de vidro partido, os cabelos opacos e a pele transparente? Que será do suspiro de vida melancólico, o último: Não me deixe!

domingo, 20 de junho de 2010

Nota

Fugir de tudo e de todos, correr descalça pelas calçadas da memória, esquecer apressada as lembranças quebradas. Chorar rápido as alegrias perdidas. Escapar das garras do futuro e esconder-se dos lábios do passado. Parar no meio fio do tempo para apenas contemplar o rosto confuso do presente e ouvir o choro triste das cordas que não mais querem cantar.


Estourar os tímpanos com notas distorcidas da minha música mal acabada. A guitarra jogada na areia movediça, engolida pela não vontade de criar. Os lápis e os papéis derretidos no ácido do bloqueio e o som de um osso torcido na angústia. Que voz estridente tem o nada que me traga vagarosamente!


Funde meu corpo no calor da desilusão, maculado pela culpa de ser tão passiva. Voam meus cabelos pelo céu rubro de meu sangue ralo derramado para suprir esforços fúteis. O supérfluo da minha existência é gritante, enquanto o sentido real da minha personalidade permaneceu mudo pelas décadas corridas em que pensei viver intensamente.

Matrizes

Quando acordei naquela manhã o mundo parecia ligeiramente diferente, algo mudara nas cores, não eram mais tão vivas como deveriam ser. Ignorando protestos do meu corpo pesado na cama vesti-me e sai para rua sem saber que o mais bizarro dos acontecimentos estava a minha espera. Matrizes gigantes cobriam por inteiro os transeuntes, nem seus rostos eram poupados. Mais estranho que isto era o que acontecia com os números destas matrizes quando alguém falava ou esbarrava em outra pessoa, eles mudavam rapidamente, num piscar de olhos. Continuei com minha caminhada, ainda meio zonzo de sono. Era estranho, pois eu não conseguia relacionar exatamente o modo como as matrizes mudavam com uma ação social específica. Subitamente meus olhos pousaram em uma matriz cuja maior parte dos números era zero e um sentimento de tristeza invadiu minha mente. Não pude conter as lágrimas que já escorriam pelo meu rosto descontroladas, precisava enxugá-las o mais rápido possível. Acelerado pela minha vergonha e fraqueza, procurei a loja mais próxima e me dirigi ao seu banheiro. Foi então que me espantei pela última vez no dia quando me dei conta que minha matriz não se refletia no espelho.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Você pode

Você pode se esconder

Em um sorriso amarelo

Fugir em um barco de flores

Dormir num sonho doce

Mas não pode correr

Com os pés descalços,

Os olhos fechados

Ou as pernas dormentes.



Pode olhar o céu rindo,

Cantar as notas alegres

De uma melodia qualquer.

Pode falar mentiras quaisquer,

Profetizar besteiras fúteis,

Mas não pode mudar a voz

Que treme, falha e chora

Quieta em sua garganta.