segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Lápis

Tinha mania de apontar lápis, vários de uma vez. Gostava de deixá-los enfileirados na mesa com suas pontas perfeitas viradas para janela. As lascas de madeira que sobravam eram guardadas em uma caixa de metal destinada antigamente para guardar diversos tipos de chá. O cheiro agradava-lhe, sempre que algo o importunava corria para sua caixa e cheirava as lascas e pontas quebradas até a calma invadir-lhe a alma. Aquele era seu mundo secreto.

Os amigos geralmente lhe davam apontadores e caixas de lápis importados nas datas festivas. Os lápis ele mantinha em uma espécie de santuário dentro da gaveta de sua mesa, os importados eram como uísque, quanto mais tarde apreciados melhor. Já os apontadores eram esquecidos no fundo do armário, não gostava deles, eram mecânicos e frios de mais. Para apontar bem um lápis era necessário um afiado canivete e dedos bem precisos, os seus eram quase cirúrgicos.

Acreditava em seu íntimo que cada vez que apontava um lápis estava esculpindo uma obra de arte em madeira. Sua técnica fora desenvolvida durante muitos anos e o treinamento começara cedo, no colégio. Criara o hábito de apontar (muito bem) os lápis alheios em troca de pequenos favores, tais como a resolução de um dever muito difícil ou um pedaço de torta no intervalo das aulas. Quando foi capaz de comprar seus próprios lápis começou a guardar suas lascas e pontas depois de apontá-los. Não queria perdê-los. Chamou a caixa de metal de cemitério, para ele era onde enterrava todos os restos mortais dos seus rápidos momentos de alegria pura e cristalina. Cheirar aquelas lascas era reviver a calma de sua existência.

Um dia sentiu necessidade de alguém mais na sua vida, uma esposa talvez. Depois de pensar um bocado concluiu que a melhor mulher para ele deveria ser uma funcionária de uma papelaria de bairro. Começou a mandar flores para uma tímida jovem que trabalhava a poucas quadras de sua casa, em pouco tempo a coragem aflorou-lhe a pele e ele a convidou para tomar um sorvete na praça. O primeiro encontro foi algo mágico, conversaram sobre suas vidas, seus planos e coisas que gostavam de fazer, na despedida um gosto amargo brotou-lhes nos lábios, queriam a expectativa de um reencontro. Estavam apaixonados.

Todo ano ela lhe presenteava com um lápis e um canivete novos. Ele adorava, sentia que logo poderia mostrar a sua amada o precioso mundo que escondia na caixa de chá. Isto era, para ele, um passo tão grande em um relacionamento como o casamento. Finalmente decidiu, levou-a até sua casa e mostrou-lhe a caixa. Explicou-lhe como aquilo, se é que poderia chamar de simplesmente aquilo, era importante e ocupava um espaço na sua vida semelhante ao dela.

E ela explodiu em risos e movimentos frenéticos, não conseguia se conter! Eis que sua mão risonha em êxtase derrubou a caixa de metal. Toda uma vida de lascas espalhou-se pelo chão perdendo-se para sempre, nunca mais seria possível juntá-las e sentir aquele cheiro tão puro. A mão dele, furiosa, ardeu contra o rosto dela deixando além da marca avermelhada naquele rosto feminino um abismo entre a sua realidade e a sua paz.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Fumaça

Toda vez que ele fumava uma penumbra formava-se em torno de si. Era um toque sutil de mistério, uma fagulha de curiosidade que me embriagava como uma bela dose de uísque sem gelo. Esses momentos lembravam-me a época em que, por acidente infeliz, deixara meus óculos caírem no chão e ficara meio cega por uns dias, eram tempos em que as óticas não eram muito rápidas. Eu era bem nova, uns dezesseis anos, talvez mais, talvez menos. Como diria meu pai “dezesseis mais ou menos um e meio”. Nesses dias em que fiquei sem enxergar direito o mundo ganhou um véu diferente, nada era nítido suficiente e as ruas pareciam porções de água escura dançando suavemente ao sabor de uma leve brisa. O começo foi meio assustador, estava tão acostumada com a nitidez prática de meus óculos que o suave mistério instalado na minha vida tragou-me para um abismo de medo. Entretanto aos poucos aprendi a tatear nas névoas que se formavam a minha volta e consegui conviver mais tranquilamente com tudo aquilo.


Apesar de o cheiro incomodar-me no começo, a simples lembrança da época de meus dezesseis anos eclipsara qualquer desconforto, tornando a experiência de ficar ao seu lado durante suas tragadas nostálgica. Gostava de inserir-me na fumaça, impregnar-me do ar que saia de sua boca e fechar os olhos. Nesses momentos eu conseguia lembrar-me perfeitamente de todas aquelas imagens pouco detalhadas das semanas de minha míope névoa e sentia meus pés flutuando nas ruas enquanto apertava meus olhos para olhar alguns centímetros a frente. Ele, então, envolvia-me em seus braços e sussurrava algumas palavras com as quais eu nem sempre me importava. Todos meus sentidos eram atentos apenas às sensações oriundas de seus lábios esfumaçados e meu corpo inteiro entrava em êxtase quando me tocavam macios e quentes. O beijo sufocava-me, eu sentia a fumaça invadir-me os pulmões e expandir-se por todos meus órgãos, tentava respirar, mas não havia mais oxigênio apenas o momento da morte de todo meu presente.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Amnésia

Eu posso dizer que tentei, tentei olhar para trás e catalogar todos os acontecimentos, entretanto há um enorme abismo entre tentar e conseguir. Há as noites em que o sono não aparece e cada som torna-se um estrondo. É o barulho dos motores rasgando o asfalto da rodovia próxima, ou o preguiçoso ronronar do computador trabalhando esquecido em algum quarto. Todo e qualquer ruído é alto o suficiente para ser ouvido mesmo quando uma música qualquer salta em plano principal para tentar, em vão, embalar tentativas frustradas de simplesmente fechar os olhos e abstrair-se de todas as sensações.


Catalogar é metódico de mais, olhar mentalmente os fatos e lugares e atribuir-lhes datas, nomes ou algo semelhante desgasta. Às vezes penso que viver no meio do caos é deliciosamente natural, não saber ao certo onde começou e, conseqüentemente, não ter capacidade nenhuma de esboçar um fim (por mais simplório que talvez venha a ser). A existência é apenas um ponto atual numa linha torta e infinita. Para que nomear aquele rosto risonho perto de um monumento sem nome? As figuras são apenas um amontoado de cores dispostas de qualquer jeito.


Quão doloroso seria saber exatamente o momento em que se disse adeus para alguém? Saber a partir de que minuto nunca mais as mãos tão íntimas tocar-se-ão. É melhor apenas saber daquele momento flutuante e assim, como se um véu envolvesse tudo, lembrar-se vagamente dos dedos acenando para um rosto borrado. Eu tentei organizar as peças da minha cabeça, mas é inútil! Do que adianta recordar apenas para saber se todo o sentimento não mais existe? Minha existência tornou-se uma jangada, bem pequena, despedaçando-se em um enorme volume de água.