domingo, 14 de dezembro de 2008

Retrato

É uma figura admirável sentada no jardim, um quadro pintado de realidade, suave como o suspiro da manhã fresca que a rodeia e denso como a noite que em algum dia penetrou-lhe na tinta. A sua mão alva brinca com os cabelos encaracolados, levemente acobreados pelo sol, tem os olhos fixos em algumas folhas jogadas sem ordem em cima da mesa de concreto das quais não consigo extrair informação alguma. Gostaria de ser alguma daquelas folhas, apenas para ter seus olhos deitados sobre mim, examinando-me minuciosamente, seus olhos...


Respira com aparente serenidade, confesso, é difícil descrevê-la, descrever seu comportamento, a posição de seu corpo. A sua volta existem o verde da grama e o cinza da pedra sobre a qual está sentada, daqui quase é possível confundi-la com a pedra. Entretanto a única coisa que consigo visualizar é sua figura, perante ela o verde e o cinza são meros borrões da realidade destorcida. O que me chama mais a atenção são seus cabelos, jogados pelas suas costas em cascatas caóticas até a cintura, eles emolduram seu rosto, tocando-lhe a face com delicadeza. Uma mecha está detida em seus dedos lânguidos que a jogam para cima e para baixo sem deixá-la escapar de si. Seus lábios quebram a harmonia de seus cabelos. Os lábios são vermelhos como o sangue que deve correr por suas veias, perturbadores, não pela cor forte, mas pelo simples e singelo mistério que exalam quando se abrem levemente para sussurrar exaustão ou qualquer outra expressão corriqueira.


Ah! Como a desejo! Seja brincando com seus cabelos macios, ou suspirando os mistérios de sua essência. Porém desejo-a com mais ardor olhando-me com aquelas janelas tão distantes e fechadas. Os seus olhos apenas se concentram nas folhas a sua frente, nos rabiscos incompreensíveis a minha sapiência. Eu sei. Nunca serei digno de seus olhos, de seus cabelos, muito menos de suas mãos descobrindo-me a face vagarosamente. Condenei-me a apenas observá-la no exato momento em que deixei que um espinho meu penetrasse-lhe o dedo. Então um filete de vida rubra escorreu-lhe e de seus olhos algumas lágrimas quentes escaparam para molhar-me o corpo. São essas lágrimas a única lembrança fixa e etérea que me resta de seus olhos. Meus eternos torturadores e acalentadores.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Talvez vingança

Chove lá fora, muitas gotas lavando o vidro da janela fechada com o frágil cadeado dourado. É irônica a tentativa dele de prender-me com um apetrecho tão clichê. Mas os clichês fazem parte da vida e o que se passa comigo não é muito diferente de vida no final das contas. Acordar todo dia rodeada por paredes encardidas, olhar pela janela trancada para um horizonte de merda, pintado porcamente com as cores do céu abatido. Mesmo no verão o céu é feio, distante, úmido e cheio de fungos. No começo eu lembro que me abatia facilmente com a presente situação, mas com o passar do tempo as coisas ficam mais calmas, anestesiadas. É como se tudo, de repente, fosse completamente normal, nada como o hábito para curar uma coisinha aqui, outra ali e criar uma rocha sobre qualquer imperfeição cotidiana.

Ele decidiu da noite para o dia que seria melhor para minha saúde prender-me nesse quarto com apenas um bloco de notas, um lápis e um apontador. Surreais eram seus olhos quando me comunicou meu destino, era uma tarde de outono, dourada e suave. Eu ri na sua cara, na verdade eu sempre duvidei de suas atitudes, nunca pensei que ele pudesse tomar uma de verdade. Era um homem cheio de palavras, muito bonitas por sinal, mas as atitudes se resumiam a rabiscar coisas em lugares e a andar sem rumo pelos corredores. Quando me mudei para sua casa eu era apenas uma menina sedenta por uma paixão de verão qualquer e, por que não, sexo.

Consegui tudo que pretendia e achei melhor sair de lá, mas ele foi me envolvendo com suas frases prontas, às vezes até mesmo com as incompletas, aquelas que ele inventava no banho ou enquanto tinha uma epifania no jardim e nunca conseguia terminar. Quase sempre me sentia sufocada com seu jeito rebuscado, eu queria ficar largada, jogada em qualquer canto ao ar livre. Ele queria me rodear de palavras, teoremas, filosofias. Enquanto eu pensava em línguas pelo meu corpo ele me entregava letras estranhas e forçava-me a esboçar um sorriso de satisfação. Eram aqueles olhos, aqueles olhos que manipulavam minhas expressões a cada espiadela em minha direção.

Um dia cai na besteira de procurar as línguas nas quais eu tanto pensava. Encontrei-as, mas ele viu as lambidas, todas. Sentiu-se ferido e uma sombra caiu sobre seu rosto. Passou de excêntrico a lunático. De letrado a metafórico. Não existiam mais os momentos de reflexão no jardim, cada espiadela era uma lâmina que me cortava o pescoço. Tentei fugir mais uma vez, mas sua indiferença atraiu-me. Fiquei, uma parte de mim precisava saber o que aquela mente pensava, tornei-me uma viciada em suas loucuras. Ele passava dias encurvado sobre a escrivaninha desenhando coisas que eu não conseguia ver. Até que um dia veio correndo em minha direção, eu ri, ele enfureceu e largou-me aqui.

Todo dia ele me obriga a escrever as mesmas coisas neste bloco imundo. Diz que eu preciso passar por esse ritual de limpeza. Todo dia eu descrevo minhas sensações e a cada dia o texto fica mais curto, mais frio, mais indiferente. Assim como ele. Meu mestre. Envolveu-me com suas letras difíceis, seus jogos de sedução e suas armadilhas. Talvez eu tenha aprendido. Quando ele resolver tirar-me daqui eu não sei o que pode acontecer, mas de algo eu tenho certeza, ele precisa de um ritual de limpeza e eu estarei apta para aplicá-lo com maestria.