quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Teste

oi

Nada


Eram olhos negros, como contas refletindo a noite sem estrelas. Vagavam na imensidão de meus sonhos já há algumas noites, sem rumo, sem sentido, apenas pairando no teto onírico como dois sóis inversos. Não mudavam em nada meu sonhar, nenhuma influência importante exerciciam nas histórias fantásticas de minha mente, existiam apenas por exsistir ou como um presságio de algo que eu talvez nunca viesse a entender.

Ao acordar deixavam pequenas marcas nos cantos de meu campo de visão, nada que me incomodasse ou impedisse de enxergar. Estavam lá, quietos e silenciosos, tão negros quanto podiam ser e ao mesmo tempo quase invisíveis pelo hábito. Lembrava deles apenas quando direcionava minha visão para alguns dos lados em que estavam. Era rápido, indolor, uma cutucada incômoda na normalidade e mais nada.

Nunca pensei em procurar algum médico para examinar o que eram essas marcas escuras na minha visão periférica. Estava bem claro para mim que eram reflexos dos meus sonhos. Nada de mais, assim, uma coisinha sem importância. Para que gastar dinheiro e horas em filas de espera? Não seria nada, nada poderia ser feito para solucionar, apenas esperar. Era isso que diriam os médicos, era disso que estava convencida. Seria isso que iria acontecer.

Então tudo estava sob controle, aqueles olhos negros não eram preocupantes, pairavam em meus sonhos, atrapalhavam minimamente meu cotidiano. Nada com que me preocupar. Também não compartilhei com meus conhecidos esse fato peculiar, não via sentido algum em atormentar meus familiares e amigos com algo tão pequeno e banal, simplesmente desnecessário. Era tão desnecessário que vez ou outra, quando percebia os pontos negros, pensava quão ridículo soaria para meus amigos o relato de tal fato.

Houve épocas em que os olhos dominavam completamente minhas noites, do começo do sono até o final eles cresciam até tomar toda a cena e não restar nada senão uma cópia do universo sem luz. Nessas noites acordava assustada com idéias de que, talvez, não fossem tão banais assim esses olhos negros atormentadores. Minha visão turvava facilmente após esses episódios e minha preocupação, por apenas um dia ou dois, tomava dimensões palpáveis. Mas também isso passava logo e acabava tornando-se algo pequeno. Minha agilidade nas tomadas de decisões era falha perante a agilidade dos olhos negros retornarem a insignificância.

Passei anos e anos convivendo com essas idas e vindas, crescimentos e recolhimentos. Passei anos não me importando com algo que cada dia ficava mais presente por ser tão não importante. Posso contabilizar meses sem fim de justificativas para não me preocupar. E, no fim, posso perceber que tanta não preocupação tomou praticamente minha vida inteira. Agora os olhos são dominantes. Sempre presentes no meu sonho escurecendo a fantasia do repouso.

Assustadores, presentes. Dois sóis turvando minhas noites e diversos pontos negros salpicando meus dias. Não eram mais pontos discretos na visão periférica. Conviva agora com uma infinidade de pontos atrapalhando meu enxergar. Fica cada vez mais difícil fazer as tarefas do dia a dia, escrever, ler. Tudo exige muito esforço e dedicação. Não tenho mais coragem de cozinhar minhas refeições, tenho medo de me queimar ou me cortar. Há pontos cegos na minha visão.

E, nestes pequenos momentos em que me esforço suficientemente para tentar enxergar minha vida nitidamente, reflito sobre o não me preocupar. A insignificância tão justificada que cresceu assustadoramente em mim. Os pontos cegos. Os sóis. Os sonhos e as turbulências. O nada que encheu meu mundo, tomou minha vida. Fez de mim escrava de meus medos. Acorrentada em pequenas banalidades que deixei tomarem muito tempo do que me era precioso. 

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Fractal


Todo dia começava do mesmo jeito, levantava da cama com os pés doendo ao tocarem o chão frio. Esticava o corpo, alongava os braços e respirava fundo. Em pé, ao lado da cama, checava cada móvel do seu quarto contando mentalmente cada objeto ao seu redor. No banheiro escovava os dentes em sua disciplina militar, penteava os cabelos com preguiça e encarava seu rosto por alguns segundos. Nessa hora apreciava algumas rugas novas e outras mais antigas, cada ruga uma marca de suas preocupações. Algumas fúteis, outras profundas. Ultimamente tentava ser como a ostra, transformando os grãos invasivos em lindas pérolas. Queria a metamorfose de seus problemas, de suas preocupações.

Assim como começara, o dia seguia sem grandes mudanças. A mesma rotina rígida, o preparo do café sempre preto, sempre amargo. As torradas com manteiga, a vilã do coração! Mas seu coração já sofria de mais com sua infelicidade, uma manteiga a mais não danificaria tanto suas mazelas coronárias. E que mazelas! Como podia ser cruel a rotina, a incerteza, a infelicidade! Algo ainda esmagava seu peito, espremia seu cérebro, mas não podia fugir dos seus trilhos, não podia descarrilhar. Não, descarrilhar nunca.

Após o café sempre seguia rumo ao trabalho, algo simples, compatível com sua posição na sociedade. Caminhava calma pelas ruas, como se o caos urbano ofuscasse um pouco seu microcosmo perturbado. Na rua, onde ninguém podia ver seu rosto, no meio de tantos e ao mesmo tempo só, era apenas um número, umas estatística. Quantas pessoas atravessavam a rua, quantas pessoas caminhavam pelas calçadas, quantas pessoas fugiam de si mesmas. Era nesses números que entrava, era aí que tinha algum significado.

Perto de anoitecer voltava para casa, tomava um banho bem quente, as vezes ficava um pouco mais na banheira pensando na gama de coisas que poderiam ter sido. As vezes imergia na água e prendia a respiração, era como se o mundo suspendesse. Nesse momento tinha paz, no silêncio da água, na escuridão de suas pálpebras. Nesse momento estava dentro de si e a visão não era tão horrenda como no espelho.

Enfim chegava a hora de deitar, nada muito requintado, uma taça de vinho para chamar o sono, o estômago vazio para chamar os pesadelos. As roupas frouxas de dormir, o desalinho dos cabelos rebeldes. A sua melhor visão. O colchão duro sempre trazia algum conforto, alguma regularidade, sempre tão necessária para dormir, para sonhar o não sonho de sua vida. Ao fechar os olhos via-se acordando. Levantando da cama com os pés doendo ao tocarem o chão...