segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Fractal


Todo dia começava do mesmo jeito, levantava da cama com os pés doendo ao tocarem o chão frio. Esticava o corpo, alongava os braços e respirava fundo. Em pé, ao lado da cama, checava cada móvel do seu quarto contando mentalmente cada objeto ao seu redor. No banheiro escovava os dentes em sua disciplina militar, penteava os cabelos com preguiça e encarava seu rosto por alguns segundos. Nessa hora apreciava algumas rugas novas e outras mais antigas, cada ruga uma marca de suas preocupações. Algumas fúteis, outras profundas. Ultimamente tentava ser como a ostra, transformando os grãos invasivos em lindas pérolas. Queria a metamorfose de seus problemas, de suas preocupações.

Assim como começara, o dia seguia sem grandes mudanças. A mesma rotina rígida, o preparo do café sempre preto, sempre amargo. As torradas com manteiga, a vilã do coração! Mas seu coração já sofria de mais com sua infelicidade, uma manteiga a mais não danificaria tanto suas mazelas coronárias. E que mazelas! Como podia ser cruel a rotina, a incerteza, a infelicidade! Algo ainda esmagava seu peito, espremia seu cérebro, mas não podia fugir dos seus trilhos, não podia descarrilhar. Não, descarrilhar nunca.

Após o café sempre seguia rumo ao trabalho, algo simples, compatível com sua posição na sociedade. Caminhava calma pelas ruas, como se o caos urbano ofuscasse um pouco seu microcosmo perturbado. Na rua, onde ninguém podia ver seu rosto, no meio de tantos e ao mesmo tempo só, era apenas um número, umas estatística. Quantas pessoas atravessavam a rua, quantas pessoas caminhavam pelas calçadas, quantas pessoas fugiam de si mesmas. Era nesses números que entrava, era aí que tinha algum significado.

Perto de anoitecer voltava para casa, tomava um banho bem quente, as vezes ficava um pouco mais na banheira pensando na gama de coisas que poderiam ter sido. As vezes imergia na água e prendia a respiração, era como se o mundo suspendesse. Nesse momento tinha paz, no silêncio da água, na escuridão de suas pálpebras. Nesse momento estava dentro de si e a visão não era tão horrenda como no espelho.

Enfim chegava a hora de deitar, nada muito requintado, uma taça de vinho para chamar o sono, o estômago vazio para chamar os pesadelos. As roupas frouxas de dormir, o desalinho dos cabelos rebeldes. A sua melhor visão. O colchão duro sempre trazia algum conforto, alguma regularidade, sempre tão necessária para dormir, para sonhar o não sonho de sua vida. Ao fechar os olhos via-se acordando. Levantando da cama com os pés doendo ao tocarem o chão...

Nenhum comentário: