terça-feira, 2 de novembro de 2010

Última noite

Era difícil escolher que roupa usar para aquela ocasião, meia garrafa de uísque já havia sumido garganta abaixo e pelo menos um maço de cigarros já virara cinzas entre seus dedos. Era tão belo deitado, dormindo tranquilamente, que roupa ele deveria usar? Com certeza algo que combinasse com seus olhos claros e seus cabelos rebeldes, não muito formal. Jeans era uma boa opção. Mas não seria casual demais? Geralmente nestes eventos não se vê a parte de baixo do convidado de honra, onde deixara a calça? Lembrava vagamente que jogara suas roupas no chão, mas a lembrança estava tão imersa no êxtase que era difícil recordar exatamente onde as peças haviam caído. Tinha que parar de ter essas aventuras de uma noite, é claro que a satisfação era garantida, o prazer era intenso, mas no final só havia o vazio, ninguém para ligar, ninguém para abraçá-la durante o dia. Entretanto aquela noite fora diferente, algo vivo ainda respirava, os olhos claros não estavam completamente apagados, mas era loucura pensar assim. Ela sabia que não era possível. Como a cultura era mórbida pensou de repente, velar um corpo sem vida durante horas, chorar sobre a pele sem elasticidade, acariciar as mãos rígidas. Enterrar todas as lembranças, as flores. Esquecer as dívidas. Devia terminar logo, o tempo corria em sua cabeça dolorida, uísque de mais, cigarros de mais. Em menos de duas horas o caixão chegaria e o corpo devia estar pronto, vestido, maquiado, sem as marcas de batom pelo corpo, marcas vermelhas, ela adorava usar vermelho nos lábios. Ah, mas ele era tão sereno! Nem parecia... Será? Estava frio, isto podia dizer certamente, estivera frio durante o ato inteiro. Uma noite fria. Parou de pensar e começou a trabalhar, ajeitou os cabelos, deu cor as faces, vestiu o corpo inerte e restava apenas fechar-lhe os olhos, entretanto não tinha coragem de apagar a luz verde clara que a encarava, seria muita ousadia deixar o corpo com os olhos abertos? Eram tão lindos, não havia por que fechá-los para sempre. Ficou admirando o trabalho bem feito, despedindo-se daquele que mais a tocara, logo o levariam para longe de si, logo nunca mais o veria. Mas era assim com todos que passavam pelas suas mãos não entendia por que ele era diferente, aquele sentimento de culpa, era apenas mais um cadáver! O caixão chegou. O corpo se foi. E na sala ficou apenas ela, deitada, cansada, com os olhos de vidro encarando o teto.

Um comentário:

Samir disse...

Queria um dia escrever metade do que você escreve =)