sábado, 6 de setembro de 2008

Pedra

Sou um ponto, ou melhor, uma linha curva semelhante a uma pálida bengala infestada de cupins. Grande parte da minha vida deixo meu corpo leve e comprido esticado em um fino colchão imerso na penumbra de um cubículo, cuja única janela é um espelho de corpo inteiro fixado na parede em frente a minha cama. Nas horas que os dedos dourados do sol iniciam sua batalha para penetrar no concreto de meu aposento, algo dentro de meu crânio desperta, fazendo minhas pernas curvas e cansadas rastejarem até a janela refletora.

A imagem que se apresenta aos meus olhos nublados repugnaria qualquer sorriso supérfluo, a barba mal feita, despontando teimosa na tez anêmica, faz do meu rosto uma manta áspera e parcialmente suja, clamando por uma camada delicada de água límpida. Minha expressão facial de nada é melhorada pelos meus lábios secos e finos, como um corte de navalha disforme, algo neles me lembra gotas tranqüilas e ácidas que corroem aos poucos a superfície, que tocam e deformam as palavras por eles faladas. Um aspecto observador pode resumir esta decadente face tímida tão enclausurada em si mesma que zomba da minha covardia social toda manhã.

Durante meus raros passeios pelos mantos de asfalto, percebo que olhares rápidos e doloridos pousam sobre minha figura doente. Poucos, porém, detêm-se mais aos detalhes rudes de meu corpo, como o nariz adunco e as mãos grandes de mais, atrapalhadas na dança do caminhar. São olhares em geral enjoados, não muito diferentes daqueles lançados a mim pela família e amigos (praticamente inexistentes), creio que fui um erro, um mau projeto da mulher que me jogou ao mundo.

Meu melhor momento é a noite, de preferência sem lua, em que o retrato mais comum em meu cubículo é um homem de idade razoável, com um nome bárbaro, cantarolando, em um sopro adocicado e inebriante, uma sinfonia qualquer, sentado em uma tosca escrivaninha. Em cima desta, uma folha em que rabisco, com traços leves, os distúrbios latentes e desejos comprimidos de um desiludido que anseia um dia ser dissecado. Porém é na forma fria de uma pedra que deposito todas as minhas esperanças físicas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bastante melancólico o texto, mostra como uma pessoa que tem uma aparência considerada "inadequada" pela sociedade é rejeitada e excluída, mas não ignorada por completo, pois se fosse assim não seria vítima dos olhares de desprezo e repugnância. Triste pensar que a estória contida no texto ocorre diariamente, com milhares de pessoas.
Até mais.