sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Seu microcosmo urbano...

Ela tinha a vida apertada nas mãos, os olhos vidrados no destino e dez reais na bolsa. Sapatos gastos de solas quentes e finas, um incômodo no canto do dedinho do pé esquerdo e a respiração falha compunham um conjunto interessante, um adorno inusitado nos lábios determinados a desabafar as frases que ensaiara em frente ao espelho durante alguns dias perdidos agora no passado. Era irônico, não podia deixar de ser, mas também era trágico, como podia ter acontecido? Esforçara-se tanto, dera tanto de si e do seu tempo (dizem por ai que o tempo é precioso, ela já não acreditava muito, na verdade acreditava apenas naquilo que podia tocar, mas isso já é uma outra história.) para tentar ter algo melhor. Chegou ao ponto de ônibus, devia esperar alguns minutos para então mergulhar num mundo heterogêneo, mais parecido com um zoológico, não gostava muito de andar de ônibus, sentia-se apertada, violentada com os odores e os empurrões ocasionais durante a trajetória, porém não havia muito mais o que fazer, ou era a grande caixa de metal ambulante ou sua determinação e coragem, adquiridas durante os longos dias de ensaio, jogadas fora. Os dez reais que carregava estavam partidos em uma nota de cinco, duas de dois e uma de um, a passagem pelas ruas da cidade custava os dois reais e mais alguns centavos, não tinha moedas, bom, pelo menos agora ganharia algumas, mas não saberia dizer se era uma vantagem, as moedas sempre escorriam pelos buracos das bolsas. Subiu no ônibus, pegou o troco, sentou-se e jogou os discos de metal escurecidos no grande estômago de pano que carregava, nunca mais os acharia. Assim como nunca mais acharia aquele sorriso que estava indo tentar recuperar, o sorriso que se perdera nas horas extras em busca de um aumento de renda. Pois, agora não havia mais sorrisos, renda ou horas extras, apenas os olhos vidrados no destino, sete reais e alguns centavos perdidos pela bolsa e a vida apertada nas mãos, vida esta que tanto desejava deixar escapar, assim, em um acidente fatal de uma caixa grande de metal.

Um comentário:

Anônimo disse...

Um texto que demonstra muito sofrimento por parte da protagonista. Pode ser a descrição de uma meretriz indo ao seu ingrato ofício, ou apenas a de uma trabalhadora comum, cujo trajeto diário se torna mais assustador devido a descrição usada, cheia de metáforas, muito inteligentes por sinal. Adorei a parte "(...)jogou os discos de metal escurecidos no grande estômago de pano que carregava(...)", algo banal mas descrito com ares de um épico, hehe. Como sempre você muito habilidosa, brincando com as palavras =)
Até mais.