quarta-feira, 16 de julho de 2008

A um Cadáver

Devo confessar, meus olhos nunca esqueceram tua imagem, eu nunca seria capaz de esquecer tua imagem, meu querido. Minhas mãos tremem ao escrever essa nota, ao imortalizar essas palavras confusas. Ontem me sentei a varanda e fiquei a observar o céu estrelado, lembrei-me de quando, juntos, ficávamos olhando o horizonte escuro e longínquo salpicado de diamantes. Sinto falta desse tempo, das nossas mãos apertadas uma contra a outra, do teu calor fluindo até meus lábios.

Então tua doença se agravou, teus olhos tornaram-se opacos, os cabelos grisalhos, aos poucos a chama tão viva de tua juventude consuimiu-se em depressão. Não me respondias mais, tampouco, acredito eu, reconhecias tua velha companheira. Eu passava horas a velar teu leito, vez ou outra te lia histórias ou contava-te causos para tentar extrair de ti algum esboço de sorriso, mas toda tua face era tão inexpressiva, teus olhos continham tanta apatia!

Houve uma noite que, enquanto eu lia A Dócil ¹, teu corpo levantou-se e apoiou-se na cabeceira da cama. Olhaste-me com muita paixão (algo próximo à insanidade), tuas pupilas fumegavam uma nova descoberta que desejavas muito me confidenciar, tuas mãos tremiam e logo eu as recolhi entre as minhas, procurando passar-te o máximo de confiança e conforto. Eis então que toda verdade, a tua verdade, foi-me revelada, busquei o ácido e, com muito zelo, carinho, firmeza e cuidado, misturei-o em teu chá...

¹ Novela de Fiódor Dostoiévski

Um comentário:

Anônimo disse...

Apesar de pra muitos a idéia passada no conto parecer algo monstruoso, cruel, eu discordo, pois nem sempre a execução de uma pessoa por outra é feita por motivos e inteções maldosas. Neste caso era apenas para interromper o sofrimento da pessoa amada, e que a que permanecesse viva pudesse continuar lembrando apenas dos bons momentos vividos entre os dois.
Você é tão talentosa que consegue escrever algo romântico mesmo nessas condições funestas, rs
Até mais =)